sexta-feira, agosto 9

IPSIS LITTERIS - UTILIDADE PÚBLICA - JOSIAS DE SOUZA - UOL


Levei minha filha ao TSE e a coloquei numa fria
                        
Minha filha Thaís completou 16 anos. Há uma semana, levei-a à 18ª Zona Eleitoral, braço do TSE no bairro brasiliense do Lago Sul. Saímos felizes do prédio. Ela brandia seu primeiro título de eleitor. Eu degustava a satisfação de assistir ao parto de uma cidadã. Decorridos sete dias, descubro que meti minha garota numa fria. Sem jamais ter comprado a crédito, Thaís tornou-se frequentadora de um banco de dados ao alcance da Serasa.
Nesta quinta-feira, pendurado de ponta-cabeça nas manchetes, o TSE suspendeu o contrato que firmara com a Serasa para fornecer informações dos 141 milhões de eleitores brasileiros. A providência é necessária. Mas não resolve o problema. A principal obrigação da Corte é outra: fornecer à plateia uma boa explicação, acompanhada de providências saneadoras e de um pedido de desculpas. Enquanto isso não acontecer, não sei o que vou dizer lá em casa.
Ao se autoconverter em central distribuidora de dados, o TSE enrolou-se. Na visita à Zona Eleitoral do Lago Sul, além de transformar minha filha em vítima potencial da Justiça Eleitoral, eu me submeti a uma “identificação biométrica”. Fiz isso por obrigação, não por opção. Fui convocado. Uma servidora simpática coletou minhas digitais, atualizou meus dados cadastrais num computador, recolheu meu velho título de eleitor e forneceu um documento novo.
No contrato com a Serasa, o TSE comprometeu-se a fornecer “apenas” informações como nome do eleitor, nome de sua mãe, data de nascimento e, quando for o caso, o dia da morte. O tribunal não tem o direito de repassar a quem quer que seja nem sequer o número do título de eleitor de suas vítimas. A razão é singela: no Brasil, o voto é obrigatório a partir dos 18 anos. O eleitor mantém com a Justiça Eleitoral uma relação compulsória. Fornece seus dados porque se não o fizer sujeita-se a sofrer sanções. Ponto.
Em nota, a Serasa informara que as informações que obteria são públicas, “podendo ser acessadas no site do TSE, para verificação ou consulta, por todo e qualquer interessado”. Quer dizer: no afã de afastar a evidência de violação de privacidade, a firma tratou os brasileiros como um bando de bugres, violando-lhes a inteligência. Ora, se os dados fossem públicos, por que diabos a empresa que se dedica à identificação de consumidores caloteiros se daria ao trabalho de firmar um contrato com o TSE?
Presidente do TSE, a ministra Carmen Lúcia disse que “não é aceitável” nenhum tipo de compartilhamento de dados: “Realmente, compartilhamento de informações nós não aceitamos de jeito nenhum, nem para fins judiciais.” Coube à Corregedoria-Geral da Justiça Eleitoral conduzir as negociações com a Serasa. Vale a pena ouvir um pouco mais de Carmen Lúcia:
“A Corregedoria é um órgão sério e eu não imagino nenhuma irregularidade.” Heimmm?!? “Imagino que deva ter sido feito um estudo e eles se precipitaram, talvez.” Hummmmm!!! “Quando há uma situação dessa natureza, se faz um processo e se leva ao plenário. Não sei por que desta vez isso não foi feito.” Hã, hã…
Se houve “estudo”, convém divulgar suas conclusões. Se “eles se precipitaram”, urge identificá-los. Na melhor hipótese, erraram. Na pior, delinquiram. De resto, é preciso explicar o papel que “elas” tiveram na encrenca. As tratativas com a Serasa começaram numa fase em que respondia pela Corregedoria-Geral a ministra Nancy Andrighi. A coisa foi finalizada quando comadava a repartição a ministra Laurita Vaz. Ambas são magistradas experientes. Por que não levaram o processo ao plenário?
Vice-presidente do TSE, o ministro Marco Aurélio Mello disse ter ficado “pasmo” com o acordo. “Tempos muito estranhos nós estamos vivendo no Brasil. O TSE é depositário de dados cobertos pelo sigilo. E esse sigilo só pode ser afastado mediante ordem judicial para efeito de investigação criminal ou instrução de inquérito.” Impossível discordar.
Não é a primeira nem será a última vez que o Estado brasileiro desrespeita sua clientela. Sob FHC, por exemplo, descobriu-se que uma quadrilha vendia em São Paulo CDs com informações sigilosas arrancadas pela Receita Federal de pessoas e empresas. Coisa fina. Incluía a identificação, o rendimento bruto e o faturamento de 11,5 milhões de contribuintes –7,6 milhões de pessoas físicas e 3,9 milhões de pessoas jurídicas.
Embora não pareça, o caso do TSE é mais grave. Por quê? Na Receita, as informações foram surrupiadas e vazadas a um bando de vigaristas. Na Corte eleitoral, os dados foram gentilmente repassados a uma empresa privada. De duas, uma: ou o tribunal se explica ou recolhe o título eleitoral de gente inocente como Thaís para mandar gravar na peça: “A Justiça Eleitoral adverte: relacionar-se com o TSE faz mal à privacidade.”

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